O Segredo nos Sapatos de Lona
O sol da manhã banhava o pátio da universidade com uma luz dourada e suave. Sentada nos degraus de pedra quentes, Margarida Costa ajustava a beca que lhe caía sobre os ombros como um manto pesado. Tinha 22 anos, e os seus cabelos loiros capturavam os raios de sol como um campo de trigo maduro. O seu olhar, no entanto, estava fixo nas suas sapatilhas de lona, gastas e desbotadas, que a haviam acompanhado fielmente ao longo de quatro anos de batalha silenciosa. Atrás dela, um coro de risos e vozes eufóricas preenchia o ar. Outros graduados posavam para fotografias, rodeados por famílias orgulhosas que chegavam em carros brilhantes, trazendo ramos de flores coloridas e abraços apertados. Margarida tinha vindo sozinha, de autocarro, tal como fizera para tudo o resto.
Não percebeu a presença do homem até que a sua sombra se projetou sobre ela, cortando a luz que aquecia as suas pernas.
— Com licença — disse uma voz calma e serena. — Está tudo bem?
Margarida ergueu os olhos. Um homem na casa dos trinta e cinco anos agachava-se ao seu lado. O seu fato cinzento, de um corte impecável, parecia intocado pelo calor já intenso. Os seus olhos, de um castanho cálido, estudavam-na com uma preocupação genuína que a fez sentir-se visível, talvez pela primeira vez naquele dia.
— Está tudo bem — respondeu ela, rapidamente, puxando a beca para cobrir os pés. — Só estava a pensar.
O homem, que se chamava Tomás Albuquerque, não se afastou. Em vez disso, o seu sorriso suavizou-se.
— É um dia importante. Por vezes, os dias mais importantes trazem sentimentos complicados no seu interior.
Algo no seu tom de voz, isento de julgamento, fez com que as defesas cuidadosamente construídas por Margarida começassem a rachar.
— Posso fazer-lhe um pedido? — As palavras saíram-lhe da boca antes que pudesse travá-las. — Algo que vai parecer muito estranho.
— Claro que pode.
Margarida inspirou profundamente, sentindo o coração a bater com força contra as costelas.
— Será que poderia emprestar-me os seus sapatos? Só para a cerimónia, só para conseguir atravessar aquele palco sem… sem que toda a gente fique a olhar para estes. — Apontou para as suas sapatilhas, sentindo as faces a arder de vergonha.
Tomás olhou para os sapatos dela, e depois para os seus próprios mocassins de couro, polidos até brilharem. Ficou em silêncio por um momento, não com censura, mas com uma reflexão profunda.
— Tenho uma ideia melhor — disse, suavemente. — Que tal usar os seus próprios sapatos, e eu caminho ao seu lado?
Margarida pestanejou, lutando contra as lágrimas que teimavam em formar-se.
— O senhor não compreende. Eu trabalhei tanto por este diploma. Dois empregos, aulas noturnas. Sacrifiquei tudo. E eu sei que parece parvo, mas eu só queria, por uma vez, parecer que pertenço a este sítio.
Tomás sentou-se completamente no degrau de pedra, ao seu lado, sem qualquer preocupação aparente com a sua roupa dispendiosa.
— Há vinte anos — começou ele, com uma voz firme que transportava uma estranha serenidade — sentei-me exatamente onde você está sentada agora. Numa universidade diferente, mas com o mesmo sentimento. Os meus sapatos tinham buracos. Tinha metido cartão lá dentro para tapar os buracos.
Margarida virou-se completamente para o encarar, o seu embaraço momentaneamente esquecido.
— A minha mãe limpava escritórios — continuou Tomás. — O meu pai tinha partido. Fui a primeira pessoa da minha família a terminar o secundário, quanto mais a universidade. Queria faltar à cerimónia de formatura, de tão envergonhado que estava.
— O que fez o senhor mudar de ideias? — perguntou Margarida, numa voz pouco acima de um sussurro.
— A minha mãe. Disse-me que aqueles sapatos me tinham levado a cada aula, a cada turno de trabalho, a cada momento de perseverança. Disse que eram os sapatos mais bonitos que alguma vez tinha visto, porque contavam a história de quem eu realmente era. — Tomás fez uma pausa, deixando que as palavras se instalassem no espaço entre eles. — Ela tinha razão. As pessoas que importavam não olharam para os meus sapatos nesse dia. Viram o que eu tinha conquistado. E as pessoas que me julgaram… bem, aprendi que as suas opiniões não valiam o meu desgosto.
Margarida sentiu algo a mudar dentro do seu peito. Um peso que carregava há tanto, tanto tempo, começava finalmente a levantar-se. As lágrimas, agora, não eram de vergonha, mas de um reconhecimento profundo.
— Você já provou tudo o que importa — disse Tomás, com uma bondade que a fez sentir-se pequena e grandiosa ao mesmo tempo. — Está prestes a atravessar aquele palco como uma licenciada universitária. Isso não tem nada a ver com os sapatos. Tem a ver com coragem, determinação e força.
— Mas todos os outros…
— Todos os outros têm a sua própria história — interrompeu Tomás, gentilmente. — Alguns escondem-na melhor do que outros. Mas eu prometo-lhe que aqueles que valem a pena conhecer vão vê-la a si, e não aos seus sapatos.
Margarida enxugou os olhos com as costas da mão.
— Quem é o senhor, afinal? Porque é que está a ser tão gentil com uma estranha?
Tomás sorriu, e os seus olhos ficaram marcados por pés-de-galinha.
— Hoje vou dar um discurso na cerimónia. Ética Empresarial. Agora dirijo uma empresa. Ajudamos a financiar bolsas de estudo para alunos que precisam. Mas isso não é o que importa agora. O que importa é que não deixe que a vergonha lhe roube a alegria de hoje.
Ergueu-se e estendeu a mão para a ajudar a levantar.
— Venha comigo — disse.
Caminharam juntos pelo pátio, passando por grupos de graduados animados. Tomás apresentou Margarida ao Reitor da universidade, falou da sua dedicação exemplar e fez com que ela se sentisse vista, verdadeiramente vista, não como uma fraude, mas como uma vencedora.
Quando a cerimónia começou, Margarida cruzou aquele palco com as suas sapatilhas de lona gastas, mas caminhou com a cabeça erguida. Cada passo era firme, cada batimento do coração um eco da sua própria resiliência. Ela caminhou sabendo que a sua jornada, cada passo difícil, tinha um valor imensurável. Da plateia, Tomás aplaudiu-a por mais tempo e com mais força do que qualquer outra pessoa.
Após a cerimónia, ele encontrou-a novamente no meio da multidão.
— Eu estava a falar a sério sobre as bolsas — disse-lhe Tomás. — A nossa empresa está sempre à procura de pessoas que compreendam o que significa trabalhar arduamente e superar obstáculos. Se estiver interessada, gostaria de conversar consigo sobre oportunidades.
Margarida anuiu, sentindo-se sobrecarregada por uma gratidão que não conseguia expressar em palavras.
— Mas mais do que isso — acrescentou ele, baixando a voz num tom mais pessoal — quero que se lembre deste dia. Lembre-se de que pedir ajuda não é uma fraqueza. Lembre-se de que a sua história, toda ela, incluindo as partes difíceis, a torna mais forte, e não mais fraca.
Entregou-lhe o seu cartão de visita.
— Ligue-me na próxima semana. Vamos falar sobre o seu futuro.
Enquanto Tomás se afastava e se perdia na multidão, Margarida olhou novamente para os seus sapatos. Ainda estavam gastos, ainda eram imperfeitos, mas de alguma forma pareciam diferentes agora. Já não eram um símbolo daquilo que lhe faltava, mas a prova tangível de tudo o que tinha sobrevivido, de tudo em que se tinha tornado. Eram as solas que a tinham levado até ali, e eram boas o suficiente.
Anos mais tarde, Margarida contaria esta história a jovens que lutavam com os seus próprios desafios. Falar-lhes-ia do gentil estranho que lhe ensinou que o valor de uma pessoa não se mede pelas aparências, que as coisas de que mais nos envergonhamos contêm, frequentemente, a nossa maior força. E dir-lhes-ia que, por vezes, os momentos mais transformadores das nossas vidas não chegam quando fingimos ser alguém que não somos, mas quando encontramos a coragem de sermos exatamente quem somos.
Naquele dia, Tomás Albuquerque tinha-lhe dado algo muito mais valioso do que uns sapatos emprestados. Tinha-lhe dado autorização para parar de se esconder, para deixar de se desculpar pelo caminho que tinha percorrido. Tinha-lhe recordado que ela sempre tinha sido suficiente, exatamente como era, e isso fez toda a diferença.